Em mais um episódio do meu projeto de ouvir os 1001 álbuns para ouvir antes de morrer, cheguei a “Vento de Maio”, de Elis Regina — e o que posso dizer é que esse disco me apresentou uma Elis diferente da que eu conhecia.
Logo na primeira faixa, algo da mixagem chama minha atenção: um batuque de agogô que soa apenas no canal esquerdo, e uma referência direta a “Um Girassol da Cor do Seu Cabelo”, do Clube da Esquina, que já analisei antes. A canção começa com uma levada suave e depois se transforma em um delicado dedilhado de violão, com backing vocals masculinos (talvez do próprio Lô Borges). Elis, como sempre, é uma obra-prima vocal — uma intérprete que parece moldar o ar com a voz.
A segunda faixa traz um samba de raiz, algo pouco comum na discografia dela. Aqui, Elis soa mais contida e minimalista, diferente da teatralidade de “O Bêbado e o Equilibrista”. É uma nova faceta: mais íntima, quase introspectiva.
Em “Tiro ao Álvaro”, parceria com Adoniran Barbosa, o casamento é perfeito. As viradas rítmicas e os trocadilhos característicos de Adoniran encontram na voz da Elis um espaço natural. Ele mesmo dizia que ela “cantava do jeito que ele gostava” — e isso fica evidente.
Depois vem “Só Deus é Quem Sabe”, talvez uma das faixas mais den
sas do álbum. A letra fala de desilusão e rendição ao imprevisível da vida, enquanto o sintetizador cria uma ambientação quase cinematográfica. O baixo, por sua vez, preenche o vazio entre os instrumentos, com elegância e peso.
Mas o ponto alto, pra mim, é “O Que Foi Feito Deverá”, com Milton Nascimento. Elis e Milton trocam de papéis: em alguns momentos ela é protagonista, em outros, backing vocal — e essa alternância é realçada por uma mixagem cirúrgica, que alterna a compressão de cada voz. A faixa é um rock progressivo refinado, com tambores, pratos e violões que criam uma textura única.
Já “Calcanhar de Aquiles” é o momento mais dançante do disco. O groove, a bateria mutante e a interpretação brincalhona de Elis mostram o quanto ela se divertia cantando — dá pra imaginá-la sorrindo entre as sílabas e as pronúncias cômicas. Aqui entendo claramente a diferença entre cantora e intérprete: ela é genial em ambas.
Em “Outro Cais”, sem cordas, a atmosfera é pura trilha de novela dramática — quase vemos a vilã arrependida voltando pra casa. E em “Rebento”, o piano dedilhado e a voz que cresce aos poucos até a catarse são puro poder interpretativo. É uma performance precisa como se fosse programada, mas completamente humana.
A releitura de “O Trem Azul” transforma uma música leve em algo visceral. Onde antes havia serenidade, agora há intensidade e urgência. Já “O Medo de Amar é o Medo de Ser Livre” traz um dos títulos mais fortes que já ouvi. Elis canta como uma guitarra distorcida, rasgando o silêncio.
E, finalmente, “Se Eu Quiser Falar com Deus”. Aqui, Elis entrega uma aula sobre espiritualidade simples. “Tenho que subir aos céus sem cordas pra segurar” — um convite ao desprendimento total. O coral final dá o toque quase gospel que encerra o disco como uma prece.
Ouça o álbum porque “Vento de Maio” é um presente. É Elis mostrando que dominar a voz não é apenas cantar — é sentir o mundo e devolver em som.
.jpg)





0 Comentários