O disco que me fez entender o Brasil de 1968 - Caetano Veloso (1968)

 Em mais um episódio da minha saga de ouvir os 1001 álbuns, escolhi o disco de estreia de Caetano Veloso (1968), e que experiência.

A abertura com “Tropicália” já me coloca dentro de um Brasil vivo: batuques, percussões orgânicas, texturas que, se fossem usadas hoje de forma digital, soariam estranhas — mas ali funcionam com perfeição. O jogo de palavras de Caetano é absurdo: ele constrói um mosaico do Brasil, misturando campo, planalto, cores, povos, contrastes. A mixagem da época é perceptível, às vezes a voz some um pouco atrás dos instrumentos, e o compressor não acerta sempre — mas isso só reforça o charme de 1968. O teclado que cresce até o máximo cria uma tensão deliciosa. E o fato da música não terminar na tônica é a melhor deixa possível: ainda tem muito pra acontecer.

As próximas duas faixas parecem continuação uma da outra. “Clarice” traz a história de uma mulher misteriosa vendo seu amor partir. A descrição me lembrou Clarice Lispector — talvez viagem minha, talvez não, mas fez sentido pela aura discreta e sofisticada que ele pinta. O instrumental é curioso: começa lento, ganha ritmo, volta a ser lento, e fecha mudando de clima. Logo depois, “No dia em que eu vim-me embora” soa quase como a versão de Caetano da própria partida para a capital. O pai calado, a família triste, a mala forrada e o desconhecido esperando. Eu, nordestino como ele, sinto na pele esse deslocamento.

Quando chega “Alegria, Alegria”, aí sim bate forte. A inquietação, a curiosidade diante do mundo, a recusa de aceitar um destino pronto antes de viver… me identifiquei. A frase “Eu vou, porque não?” é quase um manifesto: se o futuro já está escrito, por que não explorar o desconhecido antes?

Em “Onde Andarás?”, ele mostra o outro lado: quando a novidade vira rotina e o hábito vira tédio. A esperança é jogada nos braços do acaso, e o protagonista parece confiar que esse acaso o conduza ao amor — seja uma pessoa ou um acontecimento.

“Superbacana” é puro brilho. Flow afiado, rimas improváveis (“supersônica”??), energia lá em cima. Aqui vejo Caetano com os olhos arregalados diante da capital, suas praias, seu movimento incessante. É o poder da grande cidade — tudo acontece, tudo parece possível. E ele ainda costura referências do clima da época: guerra fria, tecnologia, cinema. É quase um registro da mentalidade de 1968 em forma de música.

Em “Clara”, surge Clara Nunes interpretando Clara — ironia ou intenção? Caetano canta como se fosse um marinheiro; Clara, a mulher vendo o barco partir. O refrão mistura o nome “Clara” com “águas claras”, e isso cria uma duplicidade linda. A flauta doce é um presente nostálgico; me remete à infância sempre.

Quando acho que já vi de tudo, Caetano mete uma música em espanhol no álbum de estreia: “Soy Loco Por Ti, América”. Dançante, apaixonada pelo continente, cheia de imagens — espuma branca, palmeiras… E ainda mistura português com espanhol. É incrível lembrar que essa música nasceu no exílio de Gilberto Gil e vive em tantas versões, inclusive a de Ivete Sangalo.

Em “Eles”, Caetano discute bem e mal, futuro e dinheiro. A ideia de que todos acreditam em algo, mas vivem sempre projetando soluções para amanhã sem viver o hoje. O baixo marca forte aqui, segurando o groove.

O que mais percebo é o cuidado nos detalhes. Ele descreve cheiros, ambientes, dá até a localização do banheiro na casa — como se estivéssemos lá com ele. É um artista atemporal. As guitarras aparecem pouco; o álbum é puro experimentalismo: violinos, percussões, pausas, conversas com o maestro no meio da música… Caetano sabia exatamente o que queria.

E claro: fecha o álbum dando a deixa para Os Mutantes. Esse homem não dá ponto sem nó. Aprendi muito com esse disco.

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