Quando Milton e Lô criaram um universo inteiro dentro de um disco

 Dessa vez, decidi revisitar um disco que já havia ouvido antes, mas do qual não me lembrava de nada — e isso é maravilhoso. Significa que pretendo ouvi-lo muitas vezes ao longo da vida, e ele sempre continuará sendo uma incógnita positiva pra mim: “Clube da Esquina”, de Milton Nascimento & Lô Borges.

Minhas faixas favoritas até agora são “O Sol” e “Um Girassol da Cor do Seu Vestido”.

Essa última eu já conhecia por causa do filme “Somos Tão Jovens” — o refrão ficou guardado na memória —, mas ouvir a versão original foi uma experiência completamente nova.

Tecnicamente, o disco é fascinante. O pan joga as cordas para um lado e a batida para o outro, e chega um momento em que eu realmente pensei que o lado esquerdo do fone tinha parado de funcionar — mas não. A música simplesmente sai do centro e vai totalmente pro canto, até virar outra. Me senti trollado (no melhor sentido) e ri sozinho.

Há momentos tensos, quando restam apenas o violão e a voz. Em uma das faixas, Milton parece até cantar em italiano. A ausência de batida em um dos lados do fone reforça a ideia de que música é movimento, e que, sem isso, tudo vira trama.

A guitarra é usada de forma tão criativa que às vezes soa como outro instrumento — é um disco experimental e ao mesmo tempo familiar, no sentido de que lembra uma trilha de novela, algo que a gente sente que já viveu.

Me Deixa em Paz” é uma das mais impactantes. Fui logo pesquisar o nome da cantora — Alaíde Costa — e que voz esplêndida! O jeito como ela canta o “...me iludir...” é inesquecível. É como se fosse um sample feito nos anos 70, antes mesmo de o hip-hop existir. E o mais curioso é que, mesmo com batida, a faixa continua tensa.

O álbum inteiro me soa como um parque de diversões sonoro: brinco com as palavras, com as camadas, com a engenharia de som. Sou guiado o tempo todo com maestria.

Gosto quando Milton sobe o tom do nada — a música ganha força, como um grito de quem tenta se revigorar.

O homem é mais sólido que a maré”, ele canta — e isso me lembrou de O Velho e o Mar, de Hemingway, quando o autor diz que o mar pode ser cruel para as criaturas frágeis diante do seu verdadeiro poder.

Um Gosto de Sol” me deu vontade de fazer um beat — imagina acelerar e transformar em um boombapzão.

Há também faixas com uma sonoridade quase medieval, talvez pelos metais e o órgão constante, criando uma ambientação cinematográfica. Às vezes me sinto num calabouço.

E o fim do disco me dá a sensação de déjà vu — como se ele fizesse referência a si mesmo, um flashback dentro do próprio álbum.
Acho incrível como, do nada, tudo pode virar um rock progressivo.

Ouça "Clube da Esquina" no SPTF

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