O dia em que o samba vestiu terno — Bebel Gilberto em “Tanto Tempo”

Em mais um episódio da minha saga na lista dos "1001 discos para ouvir antes de morrer", escolhi um cujo nome é em português, o sobrenome é brasileiro e a curiosidade me atiçou: "Tanto Tempo" da Bebel Gilberto, e esse é o meu review:


Um disco claramente feito para exportar a cultura brasileira para o exterior.

Não me parece simples o suficiente para tocar em bares populares ou rodas de samba. É, sobretudo, uma obra sofisticada e meticulosamente produzida. O produtor e o engenheiro de som foram cuidadosos ao separar cada instrumento nesse “salão imaginário” que o álbum cria dentro da cabeça do ouvinte.

A bateria é frequentemente tocada no metal que circula a caixa, como se quisesse simular um tamborim. Há pandeirolas, snares e pequenos detalhes de percussão muito bem posicionados no estéreo. A ambiência do álbum é variada — não sei se “experimental” é o termo certo, já que tudo parece organizado demais para isso.

O piano aparece de forma tímida, mas rouba a cena sempre que surge. Lembra o toque elegante de Tom Jobim, mas um pouco menos contido, subindo escalas com progressões lindas. A mixagem é moderna para a época — os efeitos de guitarra com wah-wah e a separação dos canais mostram o quanto o disco foi pensado com atenção aos detalhes.

Na faixa “Alguém”, a batida começa pop, até que o pandeiro entra e revela a levada de samba escondida. Há até um triângulo dando brilho e ritmo. O uso dos harmônicos do violão me surpreendeu — fazia tempo que eu não ouvia isso sendo usado com tanto bom gosto.

O piano e a guitarra se complementam — quando um silencia, o outro aparece, como se os instrumentos estivessem em constante metamorfose. Em algumas faixas, há sintetizadores que constroem uma ambiência moderna, com harmonias picotadas e loops inteligentes. Poderia ter sido lançado ontem.

O repertório é um desfile de compositores de peso: Vinicius de Moraes, Cazuza, Gilberto Gil, Dinho Ouro Preto… Bebel tinha um arsenal poderoso em mãos. As viradas digitais e a bateria eletrônica tornam o álbum surpreendentemente contemporâneo, e as frequências de rádio usadas em algumas faixas deixam tudo ainda mais envolvente.

Uma frase da música de Vinicius define o espírito desse disco:

“Se hoje ele é branco na poesia, ele é negro demais no coração.”
É isso — samba de branco. Fique à vontade para interpretar. A qualidade sonora é magnífica, mas sem a raiz das rodas populares.

Mesmo com a complexidade da produção, as melodias base são simples, e as letras, embora profundas, soam acessíveis. Gostei muito do uso de sons que lembram conchas e vento, criando a sensação de estar à beira-mar.

O baixo ganha destaque em “Bananeira” (de Gilberto Gil), trazendo o groove que faltava, junto a metais como trompete, sax e flauta. É como se o disco tivesse empacotado tudo o que a elite brasileira gostaria de mostrar aos amigos estrangeiros — dá pra imaginar o investimento envolvido aqui.

Quando comentei com minha mãe que esse álbum estava na lista dos 1001 discos para ouvir antes de morrer, ela ficou surpresa. Disse que Bebel era mais reconhecida fora do Brasil do que dentro — e agora entendo perfeitamente o porquê.

Em “Samba e Amor”, vemos o lado mais intimista do disco, só voz e violão. Simples, necessária e emocional — era o que o álbum precisava.

A introdução de “So Nice (Summer Samba)” é brilhante: um bongô à direita, um baixo sutil à esquerda e um clap central que soa como uma gota d’água num espaço vazio, cheio de reverb. O violão preenche o ar e a flauta guia o caminho.

Em “Mais Feliz”, composição de Cazuza, o destaque é o uso de um copofone (harpa de vidro) — algo tão inusitado quanto bonito.

“Tanto Tempo” é, antes de tudo, um disco de atmosfera e intenção. Ele representa o Brasil de forma elegante, internacional e, ao mesmo tempo, introspectiva.

👉 Ouça o álbum "Tanto Tempo" no Spotify 👈 


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